quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Poliamor vs Contracto de Fidelização




Quando assumo o compromisso de uma relação sei que existem coisas a serem decididas. Combinadas.  Quando assumo o compromisso de uma relação também sei que existem coisas a serem comunicadas. Informadas. No poliamor essas decisões são a pensar e comunicar muitas vezes com mais que uma pessoa. Tudo bem, até aqui faz sentido.

Quando assumo o compromisso de uma relação monogâmica ou poliamorosa não estou a assinar um daqueles contractos de fidelização da MEO ou da ZON. Não tenho que ficar.  Não passo a ser aquilo durante determinado tempo. Existem compromissos mas não esse tipo de compromisso.



Ter uma família, vários amores e amores de amores não significa criar uma seita. Sermos bullies. Vivermos de nós para nós. Só fazermos planos em conjunto. Defender um amor como se fosse acabar o mundo mesmo que ele não tenha razão. Ficar num contracto de fidelização e vender que a MEO é melhor que a ZON mesmo quando um filme demora 36 horas a sacar. Sei lá. Não uso nenhuma.

Não espero preencher questionários nem permitir que um amor meu queira de outro amor meu garantias. Informações exageradas. Calendarizar a nossa relação e decidir quando me fará sentido ser genuinamente feliz. Controlar momentos não é ter cuidado – é ordenar, manipular vontades genuínas e criar obstáculos.

Tem que existir fidelidade nas minhas relações. Não pode existir chantagem emocional, pressão psicológica e comportamentos controladores transformados em provas de amor e segurança. Temos que informar e comunicar – não temos que pedir autorização. “Mas existem várias dinâmicas” sim. Só por favor não considerem feminismo algumas das dinâmicas que se praticam em poliamor. Feminismo não é desvalorizar doenças mentais. Também não é ao contrário do que vejo por aí abraçar a amiga abusiva porque todes merecemos apoio e segundas oportunidades. Não vejo ninguém a apoiar o homem que bate. “Entre marido e mulher não se mete a colher” já sabemos que é crime público então e se for: entre vários amores ditar datas e criar obstáculos não são comportamentos controladores - onde ficamos?

Esta minha recente luta não terminou, não posso conceber ter uma voz masculina a falar mais alto. Eu não sou ninguém, não tenho poder académico, o meu vocabulário não é muito extenso e na rua tenho que me calar muitas vezes para não ser mais um corpo encontrado mas isso não significa que me esqueça ou me acomode. Sou a neta das bruxas que a sociedade esqueceu de queimar e fogo neste corpo só aquele que aquece o peito e estimula a voz.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Adeus amor





Dizemos muitas vezes adeus. Dizemos adeus que só demora até ao dia seguinte, ou até ao mês seguinte ou aquele definitivo. Dizemos com a força que carrega, a emoção que transporta e a falta de aconchego que nele vem associado. Adeus. Como quem quer mais ou já se fartou – sei lá, coração breve ou carregado. Dizemos adeus em vez de até já pela dor não ser desse. Vamos dizendo – respirando as despedidas e tomando consciência de que dói ficar ali – ou ir. 

Um amor meu vai embora e devia ser até já, mas não são umas semanas – é mais tempo, é tempo que perdi com ela e que só percebi quando a dor do adeus apareceu. Depois de meses, casa, gatos e uma cama comprada a pensar nos amanhãs. Tantos amanhãs que não aconteceram e tantas manhãs sem abraços. O tempo às vezes traz a certeza do amor – trabalhar os erros, procurar a paz e depois então mergulhar de novo nos planos de para sempre - ingénuo, infantil mas que, foda-se, rasga o peito de felicidade. 

Este é um texto de adeus – como vão existir outros de regressos, de tempo juntas, de vidas pensadas no plural. Este precisou de ficar registado por ser um peso de amar. Amar é tudo isto – gostar tanto que dois meses parecem uma eternidade, é pensar no Natal que chega mas que lhe falta luz. Um Inverno sem chuva, filmes e abraços deste amor. O amor não se divide, também não se divide a dor – vai multiplicando consoante o aproximar do ir. Partir é isto – provisório. Existe ainda a felicidade de quem vem, vivida separadamente, não se equilibram, vão se vivendo em pleno, ambas. Também essa merece ser registada quando se aproximar, por ser bonita. Existe o amor que não vai embora nem vai regressar por simplesmente ficar aqui. Segurança. Abrigo. Viver o Carnaval, o aniversário, fogo-de-artificio e uma tempestade em simultâneo. Guardar lugar para viver cada coisa a seu tempo mesmo quando tudo se junta e nos faz engolir a água de amar. 

O registo do que amamos é relatar todas as coisas boas e todas as coisas más. É questionar a nossa força. É reler quando já não dói e sorrir ou reler quando doer mais e chorar. É assumir fragilidade e saber que essa faz parte do amor. Amar é ter o coração nas mãos – e ter nas mãos o abraço de muito amor. Muitos amores.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Activismo Poliamor e Masculinidade Tóxica

Começo sempre os meus textos a dizer que tudo o que falo sobre poliamor é apenas sobre o meu poliamor. Começo sempre os meus textos a dizer que cada relação tem regras diferentes e que desde que seja consentido, é válido. Hoje não quero dizer isso. Hoje quero dizer que independentemente de ser uma relação poliamorosa ou monogâmica, existem bases que têm obrigatoriamente que existir. Essas bases são coisas básicas para pessoas com conhecimento em abuso, toxicidade e manipulação. Essas bases são o respeito e a liberdade. Estas coisas nem sempre existem e estão descaradamente disfarçadas de poliamor. De sabedoria. De consentimento. De aprendizagem. De tolerância. Isso não é poliamor, é manipulação, é bullying e é agressão. Isso não é amor: é o ego de alguém a vencer todos os dias. 

Um dia despedi-me de alguém também poly a dizer que ia ver um filme. A resposta que recebi foi: *enrosca-se nela a ver o filme*. Numa outra altura teria respondido mal, teria dito que aquilo não era okay mas ali era – supostamente – porque o fascínio pela sabedoria artificial se sobrepõe aos nossos limites. Muitas outras vezes confundi uma invasão enorme do meu espaço e dos meus limites com boas intenções. Achamos sempre que não faz mal, que é seguro, que se a voz é dada todos os dias a alguém é porque a pessoa sabe o que está a dizer. E sabe: mas sabemos nós o que essa voz nos está a fazer?



Muitas das manipulações, abusos e agressões que vivi ou que tomei conhecimento de acontecerem vieram exactamente de dentro do meio activista. Do meio de uma comunidade que grita valores e moral aos sete ventos. Mas os ventos estão todos trocados e as rajadas de masculinidade tóxica não trazem apenas gripes mas dependência e silêncio. E o nosso espaço para falarmos, amarmos livremente, vivermos sem pressões ou pressupostos sociais passa a ser um lugar que o nosso corpo simplesmente ocupa. Caladas. Companheiras. Uma sombra de elitismo, classismo e poderes académicos. Passamos a ser Mulheres por quem alguém luta melhor que nós. Não somos suficientes. Somos lésbicas fetishizadas, as nossas namoradas são adereços para a imaginação perversa de alguém, a nossa assexualidade não é totalmente respeitada e “até temos que fazer sexo”, somos poliamorosas mas não podemos estabelecer relações livremente. Não podemos - mas há quem possa. O poliamor traz choro e conversas de horas - o poliamor não pode trazer manipulação, sentimento de culpa, privar a que sejamos felizes, gritos, faltas de respeito, agressividade, imposição de limites ou falsas boas intenções que depois se transformam em discussões e ataques. 

A minha voz só a mim me pertence mas isso não significa que eu possa falar por cima de alguém. Isso não significa que eu possa controlar alguém. Significa sim que a posso utilizar sempre que sentir necessidade de me defender ou de defender pessoas escondidas em tantas camadas da cebola que é o homem branco – e foda-se, essa é daquelas que faz chorar. Chega de ter homens a ocupar o poliamor e o feminismo como se nós não existíssemos. Chega de ser objectificada por pessoas que têm protagonismo na comunidade. De lidar com situações de conversas forçadas, beijos prometidos ou carinhos que não pedi mas que me acho no dever de agradecer e retribuir. A minha voz grita: estou atenta. Estou aqui. Não me vou calar. Que venham todas as rajadas de masculinidade tóxica, as nossas gerações já se calaram tudo o que havia para calar e agora ninguém me vai deixar ficar rouca. Tenho pulmões para gritar, braços para vencer e um coração enorme que não se deixa manipular. Sou gaja, fufa e poliamorosa – e não preciso que me ensinem sobre ser gaja, sobre fufa nem sobre ser poly.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Para a namorada de alguém de quem gosto



Não sei quantas vezes ao dia te quero pedir desculpa. Quantas vezes ao dia me quero pedir desculpa por te querer pedir desculpa. Não sei muitas coisas. Aproximar-me. Ajudar. Mandar a tua ansiedade embora. Não sei. Não sei as tuas comidas favoritas. A tua viagem de sonho. Não sei o teu passado. O primeiro livro que te ofereceram. Não sei e podia não querer saber – mas quero. Quero saber de ti. Ter cuidado. Respeitar-te. Chás. Gatos. Harry Potter. Quero conversas. Eu sei que dói - e se aparecer alguém que goste de um amor meu eu quero saber que importo. Tu importas para mim.

Não posso prometer não errar. Prometer que não vá doer. Vai. Eu sei que vai. É por isso que me faz tanto sentido dizer que vou estar aqui. Quando for bom ou quando for menos bom. Para dizer coisas bonitas ou outras mais difíceis. O objectivo é a felicidade e não apenas a minha. É o amor, não apenas o romântico. São os momentos felizes, não apenas com o teu amor mas contigo, os teus amores, os meus amores. 



Quero tempo com o teu amor mas também quero tempo contigo. Simplificar. Ler. Dançar. Ouvir Otep. Não ouvir nada. Chorar. Chorar. Já disse chorar? Chorar. Não quero ocupar o teu lugar. Competir. Não quero que não te sintas especial – porque és. Os olhos de quem te ama brilham a falar de ti e não me faz sentido a possibilidade de não brilharem. Quero trazer-lhe coisas bonitas. Quero ficar. Mas não quero substituir-te –. Às vezes vamos achar que não conseguimos, é aqui que vamos procurar força em todos os amores incluindo o amor-próprio. Não o percas com os medos. Vais precisar dele. Eu também. Hoje consigo escrever isto, amanhã se calhar vou precisar da tua força. 


Não vai ser mágico mas tu és uma fada e as tuas asas levam amor a lugares incríveis. 


terça-feira, 28 de junho de 2016

Silêncio é comunicação

zig andrew toxic love

Desde sempre senti a pressão de falar no momento das discussões, a pressão de que mesmo cheia de ansiedade e super nervosa tinha que estar disponível para falar e resolver tudo naquele momento – por ser o correcto ou porque era o correcto para a outra pessoa. Passei por várias situações quando comecei a pedir uns minutos ou umas horas. Agarrarem-me. Chorarem. Ameaçarem a própria vida. Gritarem. Fecharem-me num espaço ou irem atrás de mim. Muitas vezes essas situações influenciaram a minha decisão - não tinha tempo para pensar no que era melhor para mim. Não tinha tempo para respirar. Aprendi com todas elas a impor-me. A exigir o meu tempo. A dizer que não queria conversar já. A explicar que só ia conversar quando me sentisse capaz – um dia, uma semana ou um mês, não sei.  

Digo imensas vezes que a comunicação é essencial – comunicar não é apenas conversar, temos que saber avaliar todos os tipos de comunicação. Por tantas vezes falar sobre a importância da comunicação e existirem momentos em que a minha saúde mental não permite conversar acabam por me atribuir o adjectivo de hipócrita. Sei lá. É isso que me traz aqui a escrever: comunicação não é nem nunca vai ser exigirem de alguém que fale quando querem ou vos apetece. Se partilham uma relação independentemente do tipo de relação parece-me óbvio que se queira conhecer e compreender a outra pessoa. Parece-me óbvio que se queira respeitar alguém que diz: agora não consigo falar. Isso é comunicação. Eu não estou bem para falar agora. - é comunicação. Comunicação não é sugar a energia de alguém; não é roubar o espaço individual. Comunicação não é quando alguém quer gritar, discutir ou mesmo apenas falar e a outra pessoa não quer ou não pode.  

Existe uma diferença enorme entre fazermos o bem com a consciência do nosso Eu e a consciência de que lidamos com outra pessoa; e fazermos o bem para ficarmos com a nossa consciência tranquila, mas acharmos que é porque estamos a ser bons samaritanos. Esta última é de uma gigante arrogância. As pessoas passam a vida inteira preocupadas sobre as suas acções não por lidarem com outras pessoas mas porque querem viver em paz. Enquanto isso acontecer, enquanto acontecer magoarmos alguém de forma consciente para nosso próprio divertimento ou para a libertação da nossa raiva, não existe amor que vença. Nenhum tipo de amor. O fim de uma relação, o meio de uma relação ou uma nunca relação não são motivos para humilhar alguém, para colocar outra pessoa numa situação de gozo ou raiva. Não. Lamentavelmente existe pouca inteligência emocional que permita entender que ninguém é obrigado a corresponder às exigências e caprichos de outra pessoa. 

Não foi fácil para mim chegar a um ponto da minha vida em que digo: não, não vou falar agora. Não foi fácil para mim chegar a um ponto da minha vida em que prefiro terminar uma relação que me está a retirar energia pessoal do que viver com a minha saúde mental no chão. Não é fácil para ninguém tomar decisões que envolvem outras pessoas e mil e um sentimentos mas foda-se, tem que ser. Não respeitar o espaço, o não, o tempo e sobretudo as fragilidades emocionais e mentais de alguém, é tóxico. Usar argumentos para sair de uma relação de cabeça erguida e ver x outro mal é tóxico. Somos Pessoas e quero imaginar que pessoas adultas – quando as coisas não funcionam, quando se precisa de tempo e de espaço devemos saber ouvir. Respeitar. Devemos aceitar que é alguém a pedir-nos uma coisa importante.  

"E onde fica o bem estar da pessoa que quer falar?" - Estou honestamente cansada de me tentarem culpabilizar de todas as formas possíveis. Quando digo que se não quero falar então não falo, não estou a dizer que nunca quis falar. Que nunca falei. Que nunca comuniquei. Que nunca resolvi problemas com outras Pessoas. Estou a dizer que naquele momento, naquela situação, naquela fase da minha vida e da minha saúde: não é não. Se a pessoa precisar de falar, precisar de discutir, precisar de libertar – desculpem mas não vai ser comigo. Não vai ser comigo porque eu não quero ter uma crise horrível; porque eu não quero ir tomar uma caixa de comprimidos; porque eu não quero não ter forças para decidir o que me faz sentido. Tem que existir egoísmo individual a partir do momento em que vemos que a outra pessoa não está a respeitar as nossas particularidades e sobretudo o tempo que necessitamos para resolver alguma coisa 

Não sou eu que sou complicada e não és tu que estás a ler isto e te identificas com o que digo que és complicada. Isso eu posso prometer. Nós somos o que somos, como somos - temos um background, uma personalidade e vontades diferentes. Eu gosto do meu espaço e da minha privacidade muito mais do que a partilha de afectos. Prefiro um abraço de vez em quando, um beijo antes de dormir do que uma tarde a agarrarem-me ou cheia de beijinhos - e não faz mal. Ufa. Demorei tanto tempo para perceber que não faz mal. A única coisa que faz mal em relações é não existir respeito pelas vontades individuais. Sou apologista do meio termo e da procura por todas as pessoas envolvidas por uma solução para a felicidade de todes. Mas nem sempre vai existir: não faz mal. O mundo é um sítio cheio de possibilidades e só devemos fazer parte daquelas que nos preenchem. Nos aumentam. 

Os relacionamentos deviam viver da consciência de que cada pessoa envolvida é uma pessoa individual. Os relacionamentos deviam viver do respeito pelo silêncio - sendo que este também é comunicar mais não seja comunicar as necessidades pessoais que são sempre legitimas. 

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Machismo - uma faca no peito

Vinha no avião a caminho de Londres e encostei a cabeça para dormir. Até ali tinha estado a enganar-me. Fingia que vinha carregada de uma energia super positiva. Fingia que o nosso encontro na Praça da Figueira tinha sido algo de bom - de bonito. E foi. Mas não foi. Não foi. Vinha no avião a caminho de Londres e encostei a cabeça para dormir. Caiu-me a ficha. Caíram-me as lágrimas. Vim a correr escrever isto - gritar isto. Ali, sozinha, não conseguia falar com ninguém. Não conseguia abordar alguém e pedir para chorar com a Pessoa. Não conseguia dizer que a culpa do meu choro era do machismo. Não conseguia fazer o que fiz naquele dia - falar alto.  

Até ali tinha estado a enganar-me. Fingia que vinha carregada de força. Fingia que o nosso encontro na Praça da Figueira me tinha recarregado as baterias. Mas não. Esgotaram-se. Não existem baterias que aguentem o discurso de vítimas, de sobreviventes. Não existe peito que não exploda. Coração que não chore. Queria lembrar-me do dia pela sua magia na união; mas não consigo. O meu corpo tremia cada vez que tentava falar. Todas as pessoas que falaram tinham o corpo em sintonia com o coração: revoltado. O dia ficou registado pelos testemunhos. Pela semelhança nas experiências de vida. O dia ficou registado pela certeza de que o machismo nos quer matar e nem sempre é de uma forma rápida - é de várias formas lentas. O machismo é uma faca no peito que roda como os ponteiros de um relógio. Nós não podemos viver, vamos sobrevivendo. A cada comentário a faca roda. A cada toque a faca roda. A cada dia o corpo é agredido, ignorado, desprezado, humilhado e a cada dia caminhamos na direção do machismo que mata - a faca roda. De cada vez que Mulheres são apedrejadas por terem sido violadas ou de cada vez que um homem fala mais alto para nos silenciar, a faca roda. De cada vez que é por sermos lésbicas, magras, gordas ou feias. De cada vez que a vizinha grita, de cada vez que a amiga desabafa, de cada vez que nos mandam mudar de roupa, de cada vez que eu me lembro das penetrações violentas no meu corpo de criança - A FACA RODA. 


(se alguém conhecer x autorx da foto que me deixe em comentário por favor)

A minha mãe estava ali, revoltada no silêncio dela. A minha mãe estava ali porque lhe arrancaram pedaços da filha. Porque lhe arrancaram pedaços dela. Como ela, estavam ali outras mães. Irmãs. Amigas. Como ela, como eu - estavam ali outras Mulheres. Outras crianças. Outras vítimas.  

O dia não me trouxe uma energia positiva - não me trouxe as baterias recarregadas - mas trouxe outra coisa: trouxe a memória do dia em que se falou e desabafou tudo o que a sociedade nos manda calar. Ninguém apontou o dedo - só abraços. Fica o eco do choro. Fica a tristeza imensa. Fica o amor incondicional pela luta. Fica sobretudo a promessa de nunca permitir discursos em que culpabilizem as vítimas, venham eles de onde vierem - machista não passará; discursos disfarçados de boas intenções cheios de "mas" - cheios de "e se" - não passarão.  

Todos os dias tenho que me lembrar de que para chegar onde os homens chegam, tenho que lutar mais. Gritar mais. Tenho que chorar mais. Tenho que ser violada em pensamento no meio da rua, do autocarro, do supermercado ou na casa de uns amigos de família - violam-nos em pensamento e depois manifestam orgulhosos em forma de olhares, comentários e convites. Só nós sabemos - mas também sabemos que ninguém nos vai calar, se tivermos que falar mais alto falamos. Para todas as pessoas que sofrem por sermos vítimas da sociedade machista imaginem esta faca que roda, no peito, e de olhos fechados imaginem que a estão a arrancar de vocês e a envia-la para uma fogueira simbólica - de proteção. Eu fiz o mesmo. Chega de sermos agredidas! A revolução está em nós - mexeram com uma, mexeram com todas.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Somos activistas - não somos amigxs

Eu sei que o título é bruto. É suposto ser. Termos coisas em comum não faz das pessoas amigas desde inicio. Confesso que chega a ser chato tudo o que colocamos em torno da nossa percepção de outrxs. Para nós e para elxs. 

No último ano conheci imensas pessoas cujos activismos eram semelhantes aos meus. Achava eu que isso nos unia e fazia de nós boas pessoas. Esqueci-me de que antes de fazer de nós boas pessoas fazia de nós pessoas. Termos gostos. Comecei a sofrer discriminação de dentro – por ser poliamorosa. Por não ter trinta anos. Por ser uma "miúda" - não podia ser uma Mulher se existiam Mulheres (mais) Mulheres. Isto soa-me absurdo e transfóbico - mas aconteceu. São coisas que não se dizem, que estão lá nos detalhes. Nas pontuações. No sarcasmo. Demorei algum tempo a perceber que as publicações que acompanhava, as opiniões que lia, os artigos que guardava e as pessoas que pretendia ter próximas tinham coisas com as quais não concordava. No entanto parecia ser minha obrigação aprender – com tudo e com todxs. Quando não me sentia confortável, achava que eram coisas que eu tinha que desconstruir. Um processo interminável porque no fundo cada umx de nós é distintx de outrxs. Depois tudo o que escrevia tinha defeitos. Faltava X ou Y ou X e Y. Não se dão ao trabalho mas criticavam - criticam. Anulam o nosso trabalho. O de aprendizagem e o de partilha.

No dia em que uma discussão activista se transformou numa crise de ansiedade, desrespeito, falta de bom senso, de inteligência e capacidade emocional, decidi afastar-me. Rever. Rever-me. Decidi selecionar. Não objectificando – objectificando. Selecionar. Não era bom para mim. Não eram os assuntos - os direitos humanos, os direitos das Mulheres, a comunidade LGBT, não eram os temas – eram as pessoas. Depois senti que tinha perdido pessoas. Tive essa sensação durante muito tempo. Quase que uma exclusão social em que o social se refere a redes sociais – esse social. Afastar-me parecia não pertencer. Não pertencer era frio. Parecia ser pequeno. Triste. Demorou. Demorei a perceber que antes de qualquer pessoa eu era Pessoa e calhava ser activista e que isso não fazia – e não faz – de nós amigues. Faz de nós colegas – colegas? É como se tivéssemos um emprego e mesmo que não sejamos amigues de todas as pessoas fosse bom convivermos de forma respeitosa. Quando não há respeito também não há convívio – e é okay.   





A verdade é que as pessoas activistas também podem ser abusivas nas relações. As pessoas activistas também são racistas, homofóbicastransfóbicaspolifóbicas e tóxicas. Também se metem na vida que não lhes pertence. São conflituosas. Não é um dom que nos torna imaculados – o activismo. É uma decisão e uma construção pessoal que – supostamente – nos torna pessoas melhores. Ou não. Ou somos aparências - as aparências magoam. É por aparências que estou aqui a escrever. A minha. O que sou. O que percepcionam de mim. Senti o peso de sorrir sempre em encontros, pessoalmente. De abraçar todxs. De dizer coisas bonitas em vez de falar sobre a minha enorme vontade de beber uma cerveja e comer tremoços. Mesmo que abraçar fosse a minha vontade. Sorrir. Porque também é. Mas há mais - sou mais. Depois as pessoas falam – sim, as pessoas activistas. O que dizem? Aquela tem defeitos! Existe. Faz outras coisas além de mudar o mundo. Fala de cerveja e vejam só: come tremoços. Sim, é quase isto. Somos humanos e activistas e xs activistas não comem tremoços. Xs activistas são enciclopédias que não se divertem e que têm que ter uma postura politicamente correcta 24/7. Não discutem com xs namoradxs. Não têm contas para pagar. Não têm vida - são activistas. Eu como tremoços - sou essa activista. E não é o activismo que me paga os tremoços. Sou eu. Depois existe quem seja abusivx – e seja activista. O que temos em comum? Sermos activistas. Os tremoços não sei, não se fala deles. O que sei é que não quero ser amiga de todas as pessoas que lutam, quando a luta não é a mesma. A que vem de dentro. Do coração. O coração também conheceu pessoas maravilhosas que calhou serem activistas. Que calhou conhecer nas redes sociais e conhecer pessoalmente – conviver. Ou aquelas com quem ainda não convivi. As que calhou irmos comer tremoços, sangrias ou taças enormes de massa. Ou as que calhou partilharmos artigos bonitos e nos fazermos representar enquanto pessoas lésbicas que são femininas. O coração também está cheio de outras pessoas – que não calhou serem activistas mas que gostam de tremoços e não são abusivas. Que não fazem piadas parvas. Que não são elitistas. Ah! Elitismo. Essa forma de descriminar outrxs através dos pseudo conhecimentos que se tem. Que se espeta na cara de quem não sabe, assim sem mais nem menos. Não se dá bases. - Vai! Aprende. Deixa-me usar e abusar do privilégio de classe. O pior dos activismos – o praticado por pessoas elitistas. Falsos pedantismos. Forçados. Que desmoralizam. Inferiorizam. Rebaixam. Não sou amiga de elitistas - não quero.  

Disse recentemente e repito: gosto de pessoas. Pessoas que falam de Pessoa, pessoas que comem tremoços e pessoas que gostam de mim. Sermos activistas não faz de nós amigxs – pode ser um bom começo, se não existirem outras coisas. Que apertam. Sufocam. Outras coisas que são tóxicas a triplicar por partirmos do principio que sabendo o que são comportamentos tóxicos, não os vão ter conosco. Gosto de gostar – mas aprendi a gostar de não gostar. Significa que sou Pessoa – que os meus vinte e um anos não são sinónimo de fraca maturidade. São sinónimo de que – segundo a lógica - tenho mais anos para cervejas. Sangrias. Massas em taças gigantes. Que – segundo a lógica - tenho tempo para ter perto de mim quem me faz bem – os activismos? Esses são meus - mas não me pagam contas nem me trazem amizades perfeitas. Às vezes calha trazerem - que venham os tremoços depois. Ou outras coisas bonitas.