terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Parte II - 6 Perguntas sobre o (meu) poliamor





Pedi num grupo feminista que me fizessem algumas questões sobre poliamor. Recebi mais perguntas do que imaginei, o que me deixou bastante feliz. Respondo aqui a dez dessas perguntas e nos próximos dias irei responder a todas as outras. Se tiverem questões são convidadxs a deixar em comentário. 
Primeira nota: Todas as minhas respostas são com base no meu poliamor e na forma como eu e as pessoas com quem estou gerimos as nossas relações. Existem várias formas de viver o amor e não quero com as minhas respostas invalidar qualquer relação que tenha outras bases. Somos pessoas antes de sermos pessoas poliamorosas e é importante ter isso em conta, sempre. 

Segunda nota: A minha decisão de responder a perguntas sobre a minha experiência no poliamor vem de um activismo pela voz da Mulher. É um acto politico envolver o feminismo na minha liberdade nas relações; na minha liberdade sexual; na liberdade das pessoas com quem estou. Não somos todxs cis. Não somos todxs gays. Não somos todxs sexuais. Somos minorias mas temos voz. Existimos enquanto família mesmo que seja dentro da nossa casa. Comparativamente a um homem – que é lido como "garanhão" por ter várias pessoas – uma Mulher é lida como impura, vadia, submissa – nunca como sendo uma pessoa que tomou uma decisão e que essa decisão a deixa feliz. Não como um ser humano que pode escolher. Que pode amar. Que pode fazer sexo. A minha decisão de responder a perguntas sobre a minha experiência no poliamor vem das minhas lutas: sim sou Mulher e sim amo mais que uma pessoa e tenho relações com quem me apetecer – tenho coisas a dizer e a minha experiência não é a de todxs mas igualmente válida 

(continuação das perguntas)




11 - É possível que muitas vezes ocorra o sentimento de que a pessoa nunca é suficiente para o outro e que isso cause dano ou fragilize?   

Acontece sim. Vivemos numa sociedade que romantiza a posse nas relações. Ou seja, o amor está associado a uma exclusividade. És meu e eu sou tua – para sempre. Esta forma de amar é nos ensinada mesmo que não nos seja dita de uma forma tão óbvia. Está presente nas músicas, nos filmes, nos livros, na nossa cabeça, romantizando - e no nosso coração. É muito difícil a liberdade dessa construção, não é impossível mas é difícil. No fundo estamos a desconstruir de um lado e a levar com isso de todos os outros. A mononormatividade que chega por todos os cantos. poliamor não é o milagre para mudar num dia o que nos foi ensinado desde sempre. Existe muitas vezes a sensação de que se calhar nos falta algo – o que é que x tem que eu não tenho? - isto acontece. O que muda é que pegamos nesse pensamento e percebemos que o podemos trabalhar. Existem outras alturas que não conseguimos pegar nele porque somos humanos – geralmente é aqui que aconselho uma conversa com o/os amores. Muitas vezes essa conversa vai ajudar a perceber que somos importantes e amadxs – que ter outras pessoas não é colocar o que somos em causa mas sim existir a liberdade para viver outras experiências que são certamente diferentes. Desconstruir o sentimento de posse é talvez das coisas mais difíceis de sempre – mas não é impossível.  

12 - Como explicar ao meu namorado que gostaria de ter uma relação poliamorosa com ele e uma rapariga? E sou egoísta por não desejar que eles tenham algo, sendo eu o "centro" da relação? 

Serias egoísta se quisesses que duas pessoas que não se sentem atraídas tivessem algo, contrariadas, por ser uma decisão tua. Da forma como a pergunta é colocada, não existe egoísmo. Da mesma forma que não existe um como lhe explicar, se não seres honestx. Explicar o que sentes por pessoa X, que queres colocar a possibilidade de continuares o namoro que têm mas iniciares uma relação com outra pessoa. Apresentares possibilidades e formas de construírem essa relação. Ouvires a opinião dele e perceberes onde estão os medos, o que pode ser conversado, o que podem fazer individualmente, xs dxxs e xs três (isto presumindo que a terceira pessoa está a par da situação e está disponível a uma relação poliamorosa). Se ele não concordar tens duas hipóteses: continuares o vosso namoro como base a monogamia ou não continuares esse namoro. Infelizmente neste caso as coisas são um bocadinho frias e têm que postas nestes termos. Tu quereres que algo aconteça não significa outrxs quererem e quando somos confrontados com um não só temos a opção de aceitar o não e continuar nessa relação ou aceitar o não mas decidir não continuar nessa relação. De qualquer forma introduzires leituras sobre poliamor e conversares sobre as várias formas como se pode construir a vossa relação a partir daquela que já têm é talvez uma boa ajuda. Conversarem as três pessoas envolvidas se existir então alguma possibilidade de todas as partes é muito importante. Vão ter medos semelhantes, vão ter coisas que não querem que mudem ou que querem que mudem, tudo isso só vai ser falado se forem transparentes no começo da relação poliamorosa. Mesmo sendo duas relações distintas – tu e o teu namorado actual; tu e a rapariga de quem falas - és uma pessoa comum em ambas as relações e de certo que falarem abertamente sobre o que é okay e o que não e okay dali para a frente vai ser uma excelente ferramenta de trabalho nas relações e a nível individual. 





13 - Como lidar quando uma relação acaba? Isso afecta todos? Afecta só a pessoa que acabou a relação? De que maneira isso se revê nas outras relações?   

Uma relação acabar é geralmente um momento triste para as pessoas que a vivem – nem sempre, dependendo dos motivos para que a mesma termine. Imaginando ser um momento de dor, vai afectar a forma como estamos e isso influência quase tudo o que fazemos, como quase todas as nossas dores. Não tem que afectar as outras relações directamente - é preciso existir alguma compreensão pela mudança que vai existir na pessoa que terminou a relação. 

Falando das minhas experiências, as pessoas que foram as minhas melhores amigas no fim de relações, foram os meus amores. Pessoas com quem também tinha um relacionamento. Sinto-me muito sortuda porque tive imenso apoio e senti que existiram momentos em que fui ouvida como uma melhor amiga unicamente e não como uma namorada. Mesmo quando me ouviam enquanto namorada, o apoio era infinito. Foi no colo de amores meus que chorei por causa do fim de outras relações. Não deixei de viver aquela situação porque existiam outras pessoas na minha vida. Cada pessoa é uma pessoa. Cada experiência é uma experiência. Cada dor é única.  

Já ouvi muitas vezes dizerem que quando uma pessoa poliamorosa com mais do que uma relação termina um namoro, não dói. Ouvi dizer também que não dói porque temos outras pessoas.


Eu tenho várixs amigxs e quando uma amizade acaba eu não deixo de viver a tristeza que isso me traz. Não é por ter outras relações que deixo de viver o fim daquela, especificamente.  


 14 - Como se organizam as pessoas poli em termos de gerir o tempo que passam com xs parceirxs? Assumindo que não vivem todxs na mesma casa - o que a partir de um certo numero se torna complicado. Como é que organizam a "logística" da coisa? 

Maior parte das minhas relações foram à distância. Namoro há quase três anos com a pessoa com quem vivo há dois, a logística aqui é fácil (e mesmo assim existem queixas de falta de tempo – quem nunca? O trabalho consome as pessoas. O capitalismo consome as pessoas). A minha outra namorada mora em Portugal, toda a tecnologia ajuda mas as saudades são absurdas. Quando existiu disponibilidade fui ter com ela e ela fez o mesmo. Em breve vem morar comigo, o que facilita a proximidade física.  

Das experiências que tenho de morar com mais do que um amor, as coisas acontecem de uma forma muito familiar também. É mais gente para ver filmes fofos, para jogar às cartas e ao Cluedo. Nas minhas relações à distância, quando o meu amor me visitava na casa que partilho com o outro amor, eu dormia sempre com ela. Passava mais tempo com ela. Era uma gestão fácil porque a pessoa com quem vivo compreende que não tenho muitas possibilidades de passar tempo com alguém que está longe. Exceto em aniversários de namoro/aniversário delx – nesse caso, pede-me para dormir com elx, o que nos faz sentido. Agora com a mudança do meu amor que está longe para cá a gestão do tempo será mais equilibrada. Não somos só poliamorosxs. Existem empregos e responsabilidades. Existem coisas que queremos e gostamos de fazer sozinhxs. A ideia é organizar calendários - disponibilidades – para se conseguir aproveitar o tempo da melhor forma. Curiosamente uma das últimas coisas que disse sobre esta nova mudança na nossa vida foi: vens morar comigo mas queria dizer que gosto muito de estar sozinha e não quero abdicar disso. A verdade é que, como já disse, as pessoas são diferentes. As necessidades das pessoas são de igual forma diferentes. Corresponder às necessidades de cada umx vai depender do que é que a pessoa quer e não do que nós achamos que a pessoa quer.  

Não falando da minha experiência mas para completar a questão da logística de tempo, maior parte das famílias poli que conheço usam agendas/calendários partilhados. Google calendar (corações). Quando a constelação é maior acredito que seja a forma mais fácil de fazer possível o tempo "esticar". 


15 - Aqui a pensar um bocadinho nas pessoas assexuais: se alguém for ace como é que é gerida a coisa? É mais fácil porque sendo poli, podem ir buscar sexo a outrx parceirx (coisa que numa relação mono fechada está fora de questão)?  

Deparei-me recentemente com o facto de ser assexual – depois de muita leitura percebi que existia um nome que me fazia sentido. Já tive imensas inseguranças durante as minhas relações por causa disso. Existe uma pressão para que o sexo seja presente numa relação mas isso não me chega como justificação (nem me parece nada consensual). Disse várias vezes à pessoa com quem estava na altura que compreendia se elx quisesse ter relações com outras pessoas visto que eu não queria ter relações regularmente. Sempre ouvi que isso não lhe fazia sentido porque queria ter relações comigo e que se eu não queria ia respeitar sempre. Foi uma decisão delx. Não acredito que sendo poliamorosx torne mais ou menos difícil. Depende do que é okay nas relações - dentro do poliamor pode ser okay ter relações sexuais com pessoas pelas quais não se sente atração romântica, existem outras relações que estabelecem só ser okay existirem relações sexuais se existir uma atração romântica. Portanto não posso generalizar e falar por todas as pessoas assexuais (e pessoas arromanticas) - porque sei que as relações vão depender do que é decidido entre xs envolvidxs 
Posso também acrescentar que o desejo sexual que se sente por X não tem que ser o mesmo que se sente por Y. Portanto eu querer ter alguma coisa com pessoa X não é anulado por eu ter com pessoa Y. Eu posso querer ser kinky com alguém e muito vanilla com outra pessoa. O que tem que existir sempre – repito, sempre - é respeito. Independentemente de querer o quer que seja com determinada pessoa – independentemente de o querer com outras mil - não me dá o direito de ter o que quero. O consentimento não chega através do desejo que sinto mas sim do que duas pessoas adultas decidem fazer sem a influência da pressão e da manipulação.  



 16 - Quando uma pessoa numa relação se apaixona por outra e forma nova relação, como é que é gerida a situação com a(s) pessoa(s) com quem já se tinha relacionamento? Da parte de quem inicia nova relação, nada muda no sentimento pela(s) pessoa(s) com quem já existia relacionamento? Da parte da(s) pessoa(s) com quem já se tinha relacionamento, há ciúme?  

Quando alguém se apaixona por outra pessoa, nas minhas relações, falamos com as pessoas com quem já temos uma relação para contar que está a existir uma proximidade, que estão a surgir sentimentos. Também falo com a pessoa por quem estou a sentir esses sentimentos sobre as pessoas com quem estou. Tento (como já disse numa outra pergunta) que se conheçam e partilhem algum tempo juntxs. Quando dou início a uma relação as pessoas com quem já estava são sempre as primeiras a saber do momento em que se pediu em namoro. Partilhamos esses momentos por sentir que são importantes num todo. O meu sentimento não muda em nada pelas pessoas com quem estava. São relações distintas. O amor que sinto por pessoa X não influência o amor que sinto por pessoa Y. Nunca senti que um amor retirasse outro ou o fizesse enfraquecer.  

Relativamente aos ciúmes, os ciúmes existem. É um mito que não se sente ciúmes (não anulando as pessoas que não o sentem de facto, porque acontece). Os ciúmes existem e é importante para quem inicia uma relação arranjar algum tempo para demonstrar a todas as partes que se está disponível. É uma ginástica de tempo - não podemos iniciar uma relação nova e simplesmente ignorar a/as pessoas com quem já existia esse compromisso. Às vezes esses erros acontecem sem nos apercebermos e com algum tempo começamos a aprender a gerir as coisas de forma que todas as pessoas se sintam bem. Existem pessoas que precisam de mais ou menos atenção - existem outras pessoas que precisam de mais ou menos presença física. Existem pessoas que gostam muito de ir ao cinema – existem pessoas que gostam mais de ir passear para a praia. Não podemos pegar no que fazemos com pessoa X e fazer disso regra para todas as relações. Com cada pessoa existe uma conversa sobre o que faz mais ou menos falta. Ninguém é perfeito, vão existir momentos se calhar vamos fazer asneiras porque presumimos que é o mais correcto. A ideia é: não se deve presumir – perguntamos. Ouvimos. Pegamos nisso e tentamos arranjar a melhor forma para gerir as inseguranças que chegam, o tempo que parece escasso, a falta do cinema e a falta da praia.  


Acontece também acharmos que não vamos ter ciúmes, damos inicio a uma relação poliamorosa e andamos a rastejar. A culpa é minha; Porque é que me meti nisto? Agora como é que vou fingir que estou bem? - A culpa não é tua. Não tens que fingir que estás bem. A internet tem vários artigos maravilhosos que explicam que o ciúme existe. Pega num papel e escreve - ciúme - à volta dele escreves tudo o que ele te traz. Porque é que ele existe. Quando é que existe em mais força. Lê tudo. Lida com ele. Deixa o ciúme existir. Olha tanto para ele que ele comece a perder a força. Olha para o que o traz; o que o alimenta. A culpa não é tua. Não tens que fingir que não o sentes. Grita com ele. Discute com o papel; com o ciúme. Bate no papel com uma almofada. Canta-lhe a música que cantas pior. Mas deixa que ele exista. Depois respira fundo – fala com ele, fala contigo, fala com os teus amores. Sê honestx. Vão surgir várias formas de o trabalhar se o tornares real e não o tentares esconder. 




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