quinta-feira, 31 de março de 2016

Somos activistas - não somos amigxs

Eu sei que o título é bruto. É suposto ser. Termos coisas em comum não faz das pessoas amigas desde inicio. Confesso que chega a ser chato tudo o que colocamos em torno da nossa percepção de outrxs. Para nós e para elxs. 

No último ano conheci imensas pessoas cujos activismos eram semelhantes aos meus. Achava eu que isso nos unia e fazia de nós boas pessoas. Esqueci-me de que antes de fazer de nós boas pessoas fazia de nós pessoas. Termos gostos. Comecei a sofrer discriminação de dentro – por ser poliamorosa. Por não ter trinta anos. Por ser uma "miúda" - não podia ser uma Mulher se existiam Mulheres (mais) Mulheres. Isto soa-me absurdo e transfóbico - mas aconteceu. São coisas que não se dizem, que estão lá nos detalhes. Nas pontuações. No sarcasmo. Demorei algum tempo a perceber que as publicações que acompanhava, as opiniões que lia, os artigos que guardava e as pessoas que pretendia ter próximas tinham coisas com as quais não concordava. No entanto parecia ser minha obrigação aprender – com tudo e com todxs. Quando não me sentia confortável, achava que eram coisas que eu tinha que desconstruir. Um processo interminável porque no fundo cada umx de nós é distintx de outrxs. Depois tudo o que escrevia tinha defeitos. Faltava X ou Y ou X e Y. Não se dão ao trabalho mas criticavam - criticam. Anulam o nosso trabalho. O de aprendizagem e o de partilha.

No dia em que uma discussão activista se transformou numa crise de ansiedade, desrespeito, falta de bom senso, de inteligência e capacidade emocional, decidi afastar-me. Rever. Rever-me. Decidi selecionar. Não objectificando – objectificando. Selecionar. Não era bom para mim. Não eram os assuntos - os direitos humanos, os direitos das Mulheres, a comunidade LGBT, não eram os temas – eram as pessoas. Depois senti que tinha perdido pessoas. Tive essa sensação durante muito tempo. Quase que uma exclusão social em que o social se refere a redes sociais – esse social. Afastar-me parecia não pertencer. Não pertencer era frio. Parecia ser pequeno. Triste. Demorou. Demorei a perceber que antes de qualquer pessoa eu era Pessoa e calhava ser activista e que isso não fazia – e não faz – de nós amigues. Faz de nós colegas – colegas? É como se tivéssemos um emprego e mesmo que não sejamos amigues de todas as pessoas fosse bom convivermos de forma respeitosa. Quando não há respeito também não há convívio – e é okay.   





A verdade é que as pessoas activistas também podem ser abusivas nas relações. As pessoas activistas também são racistas, homofóbicastransfóbicaspolifóbicas e tóxicas. Também se metem na vida que não lhes pertence. São conflituosas. Não é um dom que nos torna imaculados – o activismo. É uma decisão e uma construção pessoal que – supostamente – nos torna pessoas melhores. Ou não. Ou somos aparências - as aparências magoam. É por aparências que estou aqui a escrever. A minha. O que sou. O que percepcionam de mim. Senti o peso de sorrir sempre em encontros, pessoalmente. De abraçar todxs. De dizer coisas bonitas em vez de falar sobre a minha enorme vontade de beber uma cerveja e comer tremoços. Mesmo que abraçar fosse a minha vontade. Sorrir. Porque também é. Mas há mais - sou mais. Depois as pessoas falam – sim, as pessoas activistas. O que dizem? Aquela tem defeitos! Existe. Faz outras coisas além de mudar o mundo. Fala de cerveja e vejam só: come tremoços. Sim, é quase isto. Somos humanos e activistas e xs activistas não comem tremoços. Xs activistas são enciclopédias que não se divertem e que têm que ter uma postura politicamente correcta 24/7. Não discutem com xs namoradxs. Não têm contas para pagar. Não têm vida - são activistas. Eu como tremoços - sou essa activista. E não é o activismo que me paga os tremoços. Sou eu. Depois existe quem seja abusivx – e seja activista. O que temos em comum? Sermos activistas. Os tremoços não sei, não se fala deles. O que sei é que não quero ser amiga de todas as pessoas que lutam, quando a luta não é a mesma. A que vem de dentro. Do coração. O coração também conheceu pessoas maravilhosas que calhou serem activistas. Que calhou conhecer nas redes sociais e conhecer pessoalmente – conviver. Ou aquelas com quem ainda não convivi. As que calhou irmos comer tremoços, sangrias ou taças enormes de massa. Ou as que calhou partilharmos artigos bonitos e nos fazermos representar enquanto pessoas lésbicas que são femininas. O coração também está cheio de outras pessoas – que não calhou serem activistas mas que gostam de tremoços e não são abusivas. Que não fazem piadas parvas. Que não são elitistas. Ah! Elitismo. Essa forma de descriminar outrxs através dos pseudo conhecimentos que se tem. Que se espeta na cara de quem não sabe, assim sem mais nem menos. Não se dá bases. - Vai! Aprende. Deixa-me usar e abusar do privilégio de classe. O pior dos activismos – o praticado por pessoas elitistas. Falsos pedantismos. Forçados. Que desmoralizam. Inferiorizam. Rebaixam. Não sou amiga de elitistas - não quero.  

Disse recentemente e repito: gosto de pessoas. Pessoas que falam de Pessoa, pessoas que comem tremoços e pessoas que gostam de mim. Sermos activistas não faz de nós amigxs – pode ser um bom começo, se não existirem outras coisas. Que apertam. Sufocam. Outras coisas que são tóxicas a triplicar por partirmos do principio que sabendo o que são comportamentos tóxicos, não os vão ter conosco. Gosto de gostar – mas aprendi a gostar de não gostar. Significa que sou Pessoa – que os meus vinte e um anos não são sinónimo de fraca maturidade. São sinónimo de que – segundo a lógica - tenho mais anos para cervejas. Sangrias. Massas em taças gigantes. Que – segundo a lógica - tenho tempo para ter perto de mim quem me faz bem – os activismos? Esses são meus - mas não me pagam contas nem me trazem amizades perfeitas. Às vezes calha trazerem - que venham os tremoços depois. Ou outras coisas bonitas.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Till it happens to you

Este post não é sobre o meu poliamor mas não deixa de ser sobre mim, a minha luta, a minha construção e a minha voz.






Nem todos temos voz. Nós Mulheres não temos voz. Não existe espaço para falarmos de coisas importantes – aquelas que se passam connosco. Debaixo das nossas saias. Dentro das nossas calças. Nem todos temos voz. Nós Mulheres não temos voz. Não existe espaço para falarmos de coisas importantes – aquelas que se passam connosco. As mãos debaixo das nossas saias. As mãos dentro das nossas calças. Calam-nos. Continuam a vida lá fora enquanto cá dentro nos rasgam o corpo e nos tapam a boca.  

O espetáculo da Lady Gaga não foi um espetáculo - foi um momento de termos voz. Um daqueles momentos que comoveu multidões - mas depois? Depois continuam a vida lá fora enquanto cá dentro nos rasgam o corpo e nos tapam a boca. A minha depressão não vem do facto de ter sido violada – vem do facto de sentir que não tinha lugar no mundo. Sou Mulher. Nós, Mulheres, não temos voz. Ninguém entende que o cabelo que nos esconde e as palavras que cuspimos não são pedidos de pena - são dedos no ar para falar. Temos que compreender a fila e respeitar quem fala mais alto. Quem tem uma voz mais grossa. Quem – quem não sabe. Quem não sabe – fala. Não respeita a fila, nem quem fala mais baixo. Tell mewhat do you knowHow could you know? - e quem fala por nós é quem não existe dentro de nós. Quem fala por nós são as pessoas que nos trancam nos carros, nos quartos, nos armários - quem nos tranca - silêncio - que nos mata 

As lágrimas de apoio por todas as vítimas de violação são bonitas – demonstram compaixão. Depois? Depois continuam a vida lá fora enquanto cá dentro nos rasgam o corpo e nos tapam a boca. As mãos que nos calam são figuras, chantagens, medos, pânico - as mãos que nos calam são todas as mãos que não nos deixam ter voz.  

Sou – somos - vítimas de violações; depois? Depois somos vítimas lá fora enquanto acham que lhes rasgamos o corpo com a nossa dor só porque não querem ouvir. Não querem ver. Não querem - não querem. It gets better in time.  

O meu direito a partilhar a minha experiência só a mim me pertence. Que me sufoquem – que nos sufoquem. Sufocaram-me num carro com manipulações e penetrações. Violaram-me num carro com mãos iguais às de quem me manda para a fila. Iguais a todas as que não se precisam de erguer para terem lugar no mundo. As mãos grandes – as bocas enormes. Em nós só cresce a necessidade de gritar. O que a Lady Gaga fez foi gritar – por mim, por ti, pela Kesha e pelos milhares de casos de violações que acontecem todos-os-dias-na-porta-ao-lado – e que se ignoram. 




Quererem falar da minha experiência é retirarem-me, mais uma vez, a voz. Sou Mulher. E se fosse Homem? - Se fosse Homem, não tinha sido violado. Tinha – mas não podia dizer. Desta vez não por me retirarem a voz mas porque a sociedade não quer reconhecer que os Homens podem ser vítimas - mas são. O papel constante que a masculinidade pressupõe, são mãos. Que lhes tapam a boca. Que lhes rasgam o corpo. Aos Homens que sofreram. Que não podem gritar. Fica mal se gritarem. Só não fica mal sofrerem em silêncio - porque um Homem não sofre – mas sofre – mas não pode; mas – mas, e os Homens?  

Till you standing in my shoes - Os sapatos que me descalçaram e depois – depois quando as vidas continuavam lá fora – eu tive que calçar. A tremer. Com sangue nas mãos e sangue no peito. As lágrimas de quem sente compaixão são bonitas; mas – e depois? don't wanna hear a thing from you – 'cause you dont know. O silêncio é agressor. O silêncio da vítima não agride - silenciar a vítima é violarem-na todos os dias. A todas as horas. Manipulações. Penetrações. Opressões. Pressões. Porque a culpa é minha e eu sei que é - as vossas lágrimas - foi da saia e do álcool. Foi – foi da educação da mãe e a falta do pai. Foi – foi – How the hell could you knowYou don't know how it feels. A culpa é minha e eu sei que é - a culpa não pode ser de quem tem voz. De quem fala. De quem não tem filas. A culpa – a culpa? Vem depois – depois quando as vidas continuam lá foram.  

Que me destapem a boca e me deixem gritar. O piano branco e as silhuetas que avançam são rastos de nós. Que nos destapem a boca e nos deixem gritar – porque não queremos a vossa pena - queremos a vossa atenção. Dói e vocês não sabem – as mãos, as saias, as calças - o coração. Até se virem em nós. Dentro de nós. Até (se) virem – depois – contra nós. Venho, chego – e grito. Depois? Depois continuam as vidas lá fora. How the hell could you know? Se os olhos se fecham; os passos aceleram; as precianas descem: se não foste vítima - se não abriste as pernas; a boca; se não te abriram o corpo e te arrancaram a alma - não fales mas não fujas. Se queres gritar que seja ao nosso lado. Que seja a denunciares as agressões. Que seja um grito de quem não ignora.

Nem todos temos voz. Nós Mulheres não temos voz. Não existe espaço para falarmos de coisas importantes – aquelas que se passam connosco. Debaixo das nossas saias. Dentro das nossas calças. Nem todos temos voz. Nós, Mulheres, não temos voz. Não existe espaço para falarmos de coisas importantes – aquelas que se passam connosco. As mãos debaixo das nossas saias. As mãos dentro das nossas calças. Calam-nos. Continuam a vida lá fora enquanto cá dentro nos rasgam o corpo e nos tapam a boca.  

Os agressores estão em todo o lado – levantam a voz e baixam as mãos. Ninguém sabe o que fica em nós. Fluídos. Rastos. Restos da nossa violação. Não existe música que nos cure – mas existem momentos que nos marcam. Não por querermos a vossa pena – mas porque exigimos a vossa atençãoYou say I'll pull myself together – Tell me, what the hell do you know? - taparam a minha boca; culparam-me; ameaçaram-me – e eu não quero a vossa pena, quero é que nos vossos depois a vida não continue lá fora sem lutarem pelas nossas filas. Os dedos no ar. Não somos coitadas, coitadxs nem coitados – somos vítimas de uma sociedade que só ouve quando alguém grita. Ainda bem que ela gritou. No fato branco. O piano. As silhuetas. Somos nós que gritamos. Juntas, juntxs e juntos. Se não souberem o que é: que se calem – I don't wanna hear a thing from you. Sou Mulher – taparam-me a boca. Tiraram-me a voz. Ficaram fluídos. Restos de mim. Não tenho que respeitar nada a não ser a minha experiência - o que aconteceu nos óscares foi uma prova de que merecemos respeito. Exigimos respeito. A agressão está a acontecer na porta do lado, enquanto acham que entendem a raiva nas expressões da Mulher que gritou por nós, desligam a televisão – depois? Depois continuam a vida lá fora. A agressão está na vossa porta também. Fechem os olhos -. Sejam cúmplices – mas baixem em voz. Há quem queira gritar.  

Não somos violações - somos vítimas delas. Não - não queremos a vossa pena, já nem queremos a vossa atenção. Queremos que se calem. Não somos piadas fáceis. Humor rasca. Motivo de brincadeiras; de Homens que não são gente. De humoristas que não sabem o que é fazer humor - com amor, como quem ama o que faz e não o faz sem noção. Que são básicos. Não somos - penetrações; manipulações; mutilações. Somos opressões. Pressões. Não somos violações - somos vítimas de quem nos cala. Que alguém grite. Na voz da Lady Gaga estivemos presentes. As lágrimas? - as lágrimas ficam para depoisdepois da vossa vida parar - durante uns minutos. Nós estaremos aqui – depois. Agora calem-se. Não é da saia nem da merda das calças. Não foi – ai do pijama nem do álcool. Não foi de mim, nem da Mulher que estava casada e era violada todos os dias pelo marido. Não foi da Kesha nem da neta do senhor da mercearia. Não foi da vossa melhor amiga nem da vossa vizinha. Não foi do vosso colega com quem gozam – a quem chamam maricas. Foi – foram esses discursos todos - que levaram a que a nossa violação não tenha acontecido uma vez, nem duas – mas a acontecer todos os dias.  


Till it happens to you – you don't know how it feels.